No coração do Distrito Federal, entre o concreto das superquadras e o sussurro persistente da memória candanga, o Guará emerge como protagonista de uma narrativa que mistura barro, sonho e comunidade. A websérie “História do Guará – Do nascimento aos dias atuais”, iniciativa do projeto Hackacity, propõe mais que um resgate histórico: é um manifesto afetivo e político em prol de um novo urbanismo, de base humana e tecnológica.
É como se o Guará fosse contado pela própria terra vermelha que tingia os pés dos primeiros moradores. A narrativa percorre não só os anos, mas as camadas emocionais que constituem a cidade: a chegada dos pioneiros em 1958, o olhar visionário de Rogério de Freitas, o mutirão colaborativo que erigiu as primeiras casas, as ruas que celebravam cada tijolo assentado com samba, riso e chapéu de palha.
O episódio inaugural da websérie, intitulado “Ep101”, é uma aula viva de urbanismo popular. E mais do que isso — é poesia em concreto. A oralidade dos depoimentos, a reconstrução dos afetos, a força dos gestos anônimos. Tudo isso traduz um modelo de cidade em que o coletivo não era um conceito de gabinete, mas uma prática de sobrevivência, de pertencimento.
A proposta do Hackacity, no entanto, não é apenas nostálgica. O passado serve de alicerce para o futuro. Ao revisitar a gênese do Guará, o projeto abre espaço para discutir as cidades inteligentes não como fetiches tecnológicos, mas como ferramentas a serviço da dignidade urbana. IoT, Blockchain, inteligência artificial — palavras muitas vezes distantes do cotidiano — são aqui trazidas com afeto e propósito. O futuro, afinal, só faz sentido se for para todos.
Em tempos de algoritmos, a websérie se ancora na palavra dita no portão, no vizinho que ajudou a levantar a laje, no professor que abre a escola técnica ao bairro. O Guará é narrado como um organismo vivo, com pulmões verdes, articulações comunitárias e uma alma coletiva pulsante.
O episódio remonta ainda figuras simbólicas como Wadjô Gomide, da SHIS, e exalta a força feminina e negra presente nas entrelinhas da fundação. A cidade é mostrada como um símbolo da moradia digna construída por mãos comuns, mas ideias extraordinárias.
“Viver o Guará” deixa de ser um jargão local para se tornar um chamado — uma provocação sensível sobre o que queremos construir nas outras cidades do Brasil. Um convite à reinvenção dos espaços urbanos a partir da memória, da colaboração e da escuta ativa.
Ao fim da exibição, fica a sensação de que algo mudou. Talvez tenhamos entendido que o futuro das cidades não está nos prédios mais altos, mas nas histórias mais profundas.
E como disse um antigo morador, enquanto sorteava casas em bilhetinhos num chapéu de palha:
“Aqui, até o cimento era partilhado com sorriso.”